O SIPE - Seminário Interdisciplinar de Pesquisa e Estágio, é um evento semestral, organizado pelos alunos do Curso de Letras do Departamento de Ciências Humanas e Tecnologia - DCHT XVI - Irecê. Este blog nasceu da necessidade de compartilhar as experiências do evento e ao mesmo tempo avaliá-las para que a cada semestre superemos em qualidade e abrangência de público.

Artigos apresentados no SIPE

 Continuamos aguardando  outros envios dos alunos...

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JUSTINE: DO DESEJO À PERVERSÃO DO DISCURSO

Patrícia Barreto de Souza
Patrícia Morais Rosendo Dourado[1]

Robério Pereira Barreto[2]

“Entendamos de uma vez por todas; nada seria mais inútil do que tomar Sade ao pé da letra, seriamente. Por qualquer aspecto que seja abordado, sempre fugirá de nós.”

Georges Bataille

Resumo: Entre “risos e enrubescimentos” ousam de vez em quando falar de sexualidade. A análise do presente artigo propõe perceber os discursos, a perversão da ordem, o afrontamento do bem e do mal, vício e virtude em Marquês de Sade, que acreditava que estes princípios mesmo sendo contrários, são necessários para manutenção do equilíbrio social.  Através das personagens Justine e Julieta, que representam a resistência da moralidade e a entrega à amoralidade respectivamente. Essa perspectiva de interpretação fundamenta-se na Análise do Discurso Francesa – ADF, e nas bases filosóficas sobre sexualidade, vício e virtude, para se perceber as nuances possíveis.

Palavras–chave: Sade; Desejo; Perversão; Discurso e Poder

1)                                         Introdução
Justine ou Os Infortúnios da Virtude, romance do Marquês de Sade, escrito em 1787, publicado pela primeira vez em 1791. Um livro considerado proibido, uma das primeiras literaturas malditas da modernidade, vendido “debaixo do balcão”, as bibliotecas públicas os guardam no chamado “inferno” dos livros malditos segundo Carpeaux[3]. Alguns a consideram, obscena, estranha e inimaginável.
Neste artigo será explorado desde o Desejo à perversão dos discursos presente na obra sadeana Justine ou Os infortúnios da virtude. Pretende-se perceber as interdições e transgressões desse autor que abalou o século XVII, e até hoje abala a acomodação literário-discursiva.
Sade causa rupturas não somente no campo da sexualidade como é habitualmente lembrado, mas também na perversão de toda uma ordem discursiva, que segundo Foucault, é regida por procedimentos internos e externos de controle[4]. O que Sade faz em sua obra e também em Justine (objeto dessa análise) é utilizar-se do “discurso que é ao mesmo tempo um instrumento e um efeito de poder” [5] para afrontar o poder institucionalizado da Igreja e do Estado.
O Marquês de Sade confronta as idéias de virtude e vício, através das personagens Justine e Julieta[6], duas irmãs, filhas de um mercador, que foram instruídas em um dos melhores conventos de Paris. Porém, após uma decadência financeira o pai das jovens, no desespero, fugiu para Inglaterra deixando-as com sua mulher, que faleceu oito dias depois de sua fuga. Os parentes ao descobrirem a falência, abandonaram-nas, e o convento deu-lhes um ultimato de vinte e quatro horas para saírem. As irmãs seguem caminhos distintos:

“Desde que suas intenções eram tão diferentes, sem nenhuma promessa de voltarem a se ver, as duas irmãs se separaram. Julieta que ia, como pensava, tornar-se uma grande dama, consentiria em tornar uma menina cujas inclinações virtuosas e inferiores iriam desonrá-la, e desejaria Justine, por sua vez, pautar seus costumes na sociedade perversa que se tornaria vitimada crapulice e do deboche público? Cada qual pois procurou recursos e abandonou o convento no dia seguinte ao combinado.”[7]

Justine, então, é personificadora da virtude ou dos princípios cristãos, tais como benevolência, castidade, solidariedade e justiça, mas ainda assim acaba sempre envolvida, inocentemente, em delitos, homicídios e depravações conduzida por sua “má estrela”. Contudo, Julieta, sua irmã três anos mais velha, arriscou-se pelos caminhos do vício e do prazer, entregando-se aos “instintos”, ao crime, à devassidão e aos desejos escandalosos.

2)                                         Sade: literatura de desejo
“Sade é um autor ‘erótico’, estão sempre a nos dizer”. Barthes em comentário à obra sadeana.[8] O termo erótico vem do gr. erotikós, pelo lat. tard. eroticu. Que remete a Eros, deus grego do amor. No sentido em que se aplica nesta análise, o termo tem por significância a ideia que provém de Sigmund Freud, que usou o termo Eros para definir libido ou o impulso vital como um dos instintos primários principais que regulam o comportamento humano, ao lado da morte. A força psíquica de Eros é citada como pulsão. O impulso de vida é de conservar-se para a sobrevivência e reprodução. Eros abrange tudo que proporciona o prazer. Nesta concepção freudiana o termo se opõe a Tânatos [Do mit. gr. Thánatos, lit., ‘morte’.] que seria o deus da morte, filho da Noite e de Hipnos, que na psicanálise designa a pulsão de morte, de destruição. Julieta entrega-se aos prazeres de Eros, Justine preocupa-se com Thánatos, a castidade é a escolha pela preservação do corpo, sob a ótica de que todo gozo sexual é um princípio de morte, visto que há uma perda da energia vital.[9]
Em Justine ou Os infortúnios da virtude há dualidade representada de Eros e Thánatos, quando Justine prefere a virtude como diretriz à sua vida, enquanto Julieta opta por viver o Eros em toda sua completude. E vê através dessa vivacidade e do uso de seu corpo a possibilidade da ascensão social. Visto em:

[...] “Julieta, encantada por ser dona de si mesma, tentou por um momento comover Justine mas, vendo que nisto não teria êxito, pôs-se a repreendê-la ao invés de consolar. Disse-lhe que era uma bêsta e que, com a idade e o aspecto que tinham, não havia exemplo de jovem alguma que tivesse morrido de fome. Citou-lhe o caso da filha de um de seus vizinhos, a qual, tendo fugido da casa paterna, era agora mantida ricamente por um grande proprietário  e vivia faustosamente em Paris. Justine tinha horror a êste exemplo pernicioso, e dizia preferir morrer a segui-lo; e decididamente recusaria morar com sua irmã logo que a visse disposta a um gênero de vida tão abominável como sôbre o que Julieta lhe fazia o elogio.”[10]

Mas o que é o erotismo em Sade? Sempre falam de Sade como um escritor erótico ou até mesmo pornográfico, Barthes acredita que na sociedade o erotismo não passa de um vocábulo, já que as práticas só podem ser codificadas se forem conhecidas, isto é, faladas; mas a sociedade nunca enuncia qualquer prática erótica, “apenas desejos, preâmbulos, contextos, sugestões, sublimações ambíguas,” de maneira que o termo erotismo pode ser determinado apenas como uma eterna alusão. Sob essa ótica, a literatura sadeana não é erótica, como fora dito antes, não existe em Justine, um strip-tease de nenhuma natureza, esta alegoria fundamental do erotismo moderno.
Esta análise se ocupará de alguns elementos que marcam a face erótica na obra Justine. Tais elementos são o que diferencia o que Barthes chama de “Erótica Sadiana Criminosa da nossa inofensiva, enquanto a primeira assertiva, combinatória, ao passo de que a segunda é sugestiva, metafórica.” [11]
As personagens do livro analisado são diferentes, mas possuem traços em comum, elas divergem na conduta, mas converge-se em alguns pontos. O primeiro ponto onde se assemelham é a descrição da beleza física. A descrição da beleza tem importância fundamental, visto que Sade a pinta, para depois sujá-la. Julieta era “[...] Morena, mui viva, um belo porte, olhos negros de rara expressão, de espírito, e, sobretudo de uma incredulidade que, dando um sabor diferente às paixões, faz com que se busque com maior cuidado a mulher que nela suspeitamos” [12]. Já Justine, Sade descreve:
“Quanto mais se considerava o artifício, a astúcia, o coquetismo nos traços de uma, tanto mais se admirava o pudor, a delicadeza e a timidez na outra. Um ar de virgem, de grandes olhos azuis cheios de encanto, uma pele deslumbrante, um porte delgado, um timbre de voz suave, dentes de marfim e belos cabelos louros, eis o esbôço desta jovem encantadora, cujas graças ingênuas e traços delicados são de um tom de tal maneira fino e delicado que não poderiam escapar um pincel que desejasse executá-la.” [13]

Note que a descrição feita de Justine é pormenorizada, a imagem literária que forma na mente de quem lê, é a imagem de um anjo, a imagem da delicadeza. Tanto a imagem de Justine como a de Julieta, são traçadas, para depois serem profanadas. Julieta é a que aos quase trinta anos, tem bela aparência, conserva o belo porte, e é rica. Antes da descrição física da personagem, Sade chama Julieta de sacerdotisa de Vênus, uma alusão a mitologia latina em que, Venus, é considerada a “deusa da formosura, do amor e dos prazeres Enquanto Justine aos vinte e sete tem a marca dos criminosos, e tem o aspecto sofrido, embora possa notar vestígios de sua beleza. Para Bataille (2004, p.226), “a beleza cuja perfeição rejeita a animalidade, é apaixonadamente desejada, é que nela a possessão introduz a sujeira animal. Ela é desejada para ser sujada. Não por ela mesma, mas pela alegria experimentada na certeza de profaná-la.” As personagens em questão são belas, como todas as heroínas de Sade, pois a beleza ainda segundo Bataille (2004, p.229) é interessante em seu mais elevado nível no que se refere ao “fato de a feiúra não poder ser sujada, e que a essência do erotismo é a sujeira.”
Os livros ditos eróticos concebem aquém da cena erótica, sua expectativa e idealização é que são de fato excitantes; quando a cena chega, o ápice, o que ocorre é um desapontamento. Noutras palavras são livros do Desejo, não de Prazer. Sade se adéqua perfeitamente nestes escritos, o que existe neles são mais expectativas do que consumação delas. “Um mesmo sentido diz aqui e lá que tudo isso é muito ilusório.” (Barthes, 2008, p.68)  
Há um fetiche nos textos sadeanos que está ao nível imaginário, o prazer não existe em Sade, este pode ser exemplificado com a colocação de Barthes acerca do expectador apressado que sobe ao palco do espetáculo de cabaré, tentando acelerar “o strip-tease da bailarina, tirando-lhe rapidamente as roupas, mas dentro da ordem[14], isto é: respeitando, de um lado, e precipitando, de outro, os episódios do rito ”[15]. Mas no livro de Desejo, nunca será vista a nudez.  Sade não explicita, nem descreve minuciosamente as cenas de sexo, apenas cria o desejo, sugere os meios e as reações das personagens e suas preferências:

“— Vinde, meu amigo, vinde — disse um dêles — aqui estaremos às mil maravilhas: a cruel e fatal presença de minha mãe pelo menos não me impedirá de contigo saborear, por momentos, os prazeres que me são tão caros.
 Aproximaram-se e se colocaram de tal modo diante de mim que nenhum de seus propósitos... nenhum dos seus movimentos pôde me escapar, e eu vi...”[16]

No trecho citado acima, Justine após escapar das mãos do bando criminoso, encontra o Sr. Bressac e um criado em um encontro homossexual. Sade apenas sugere essa possibilidade do ato sexual, as reticências usadas promovem um vácuo a ser preenchido pelo imaginário do leitor. Posto que “o verdadeiro lugar da escrita, é a leitura.” [17] O leitor se revela o “ser total da escrita”, um texto é composto de escritas múltiplas. Em Justine, assim também como outras obras sadeanas, dão ao leitor esse lugar de ser total da escrita, o que o caracteriza no âmbito do desejo e não do prazer, sendo considerado erótico por apenas mostrar a fenda da linguagem, mas não o que há no cerne dela. Se assim o fosse, teríamos então, uma literatura pornográfica, que não cria o desejo, mas o consuma mostrando-se.

3)                 As faces da mulher em Sade
A moeda sexual é o “jogo duplo” das representações de Sade, é nessa oposição que a  sexualidade da mulher sob o ponto de vista do Marquês, “tilinta” diante do leitor, são elas: Justine e Julieta, a castidade e a boa moral de uma, em oposição à escolha pela prostituição e o crime da outra.
a.                  Julieta
Julieta ao adentrar na prostituição atua como um sujeito desejante, que se oferece como objeto que quer ser e estar no “corpo” social. Em outras palavras, ela oferta seu corpo como ingresso ao corpo da alta sociedade.
“Ao sair do convento, Julieta foi à procura de uma mulher, de quem ouvira falar por uma amiga que se pervertera, e de quem quardara o enderêço. Ali chegou impudentemente com suas posses sob o braço, um vestido em desalinho, a mais graciosa figura do mundo, e um ar de escolar. Conta sua história à mulher, suplicando que a proteja como fizera, alguns anos antes, à sua antiga amiga.”[18]

O trecho acima citado mostra que bem antes da saída do convento, Julieta já estava inclinada à prática “libidinosa”, note o uso da palavra “impudentemente” que sugere que Julieta já não tinha pudor algum, e que já estava disposto a fazer uso de seu corpo como instrumento de inserção no corpo da sociedade daquela época.
“Terminado o sermão, a novata foi apresentada às suas companheiras, e em seguida foi-lhe indicado seu quarto e no dia seguinte suas primícias foram vendidas. Em apenas quatro meses a mesma mercadoria foi, sucessivamente vendida a oitenta pessoas, e todos a pagaram como se ela ainda fôsse virgem, e sòmente ao término dêste espinhoso noviciado é que Julieta recebeu a patente de irmã conversa. A partir daí foi realmente reconhecida como filha da casa e passou a partilhar das fadigas, das libidinagens... além do noviciado. Se no início algumas vêzes Julieta tinha rebaixado à natureza, depois esqueceu completamente as leis naturais: buscas criminosas, prazeres vergonhosos, devassidão, e vícios ocultos, gostos escandalosos e estranhos, fantasias humilhantes, tudo isto, por um lado, fruto do desejo de fruir sem arriscar a saúde, e, por outro, uma saciedade perniciosa que ao ferir a imaginação só a deixa expandir-se por excessos e saciar-se de depravações...”[19]

A citação anterior evidencia a iniciação à prostituição, é interessante perceber que a virgindade de Julieta foi vendida a “oitenta pessoas”, não a oitenta homens, há, portanto, a abertura para o entendimento que havia a prática do lesbianismo, Sade ao sugerir práticas que segundo ele mesmo “esqueceu completamente as leis naturais”, afirma-se totalmente contra a concepção de sexo reprodutivo como era posto pela Igreja.
No uso da frase: “fantasias humilhantes, tudo isto, por um lado, fruto do desejo de fruir sem arriscar a saúde, e, por outro, uma saciedade perniciosa que ao ferir a imaginação só a deixa expandir-se por excessos e saciar-se de depravações...” Aponta para um dos princípios do sadismo que é a negação do outro. A fantasia e o fetiche são elementos base para a compreensão do erotismo, uma atua no nível da individualidade e a outra no pessoal. Ao se submeter às fantasias, a personagem em questão nega seu eu, o que segundo GIDDENS, (1993, p.98) o fato da mulher submeter-se há uma simbologia de ser “morta” é a negação de si no espaço sexual, o que implica o “ato de matar” do sedutor, que para o teórico,  tem por função a destruição da virtude.
A docilidade com que Julieta se entrega e a negação de seu eu, pode ser comparada a “O Homem- máquina” de La Mettrie, que na visão do pós-estruturalista Foucault (2009, p.132) é ao mesmo tempo um arrefecimento da alma e uma teoria geral do adestramento, no meio dos quais reina a noção de “docilidade” que liga ao            “corpo analisável o corpo manipulável”. É dócil um corpo que pode ser dominado, que pode ser utilizado, que pode ser modificado e aprimorado, na iniciação de Julieta há todos esses processos. Há o domínio da Sra. Boisson, que “a abrigou”, a utilização deste corpo, para condicioná-lo da melhor maneira possível para o meretrício. Bataille (2004, p.209), fala que na prostituição havia a consagração da prostituta à transgressão, nela o aspecto proibido da atividade sexual aparecia ininterruptamente; A vida de Julieta é dedicada à infração da interdição da sexualidade.
Sade coloca que a natureza é criminosa, e ser benévolo na sociedade é ir de encontro a essa natureza. Sempre opõe a virtude ao vício, o primeiro sendo posto fraco e o segundo forte. No livro analisado há uma representação da sociedade, mas trata-se de uma representação nua e constrangedora, talvez seja este o motivo de Sade ter sido “incompreendido” na sua época e na atualidade. A impunidade é sua marca, ele a coloca como gloriosa, depois de matar seu primeiro marido que conheceu na casa da Sra. Boisson, Julieta, agora Sra. de Lorsange retoma seus velhos costumes, “e por acreditar que era alguma coisa no mundo passou a ter um pouco mais de compostura. Não era uma jovem fácil, mas uma rica viúva que dava belos suspiros, e em cuja casa a cidade e a côrte se honravam por serem admitidas”[20]. Mais a frente há inúmeros relatos de que Julieta comete vários crimes, dentre eles, abortos, para não perder a beleza.
Toda criminalidade é seguida pela prosperidade e a virtude perseguida pela infelicidade (cf.p.26). Isso é visível no drama da personagem Justine.

b.                 Justine
Justine é a personagem que Sade toma para “atormentar”. A virtude segundo ele existe para ser atormentada pelo vício. A história de Justine é marcada por acusações de crimes não cometidos. Sempre se negando ao vício, ela se vê em situações contraditórias ao que normalmente seria o resultado de sua boa conduta. Até ao ajudar, arranja para si situações perigosas, que a colocam diante dos outros como uma criminosa. Escolhe como caminho a castidade, a honestidade e benevolência. A castidade é um princípio que em Sade é altamente questionado, ele em outros escritos considera injusto as jovens manterem-se virgens por causa de uma imposição egoísta da família. Há, de fato, uma relação de subordinação do virtuoso ao sádico. A jovem personagem é frequentemente penitenciada por ser correta, e em incontáveis vezes é violentada, submetida a indignidades sexuais, marcada a ferro como ladra e flagelada quase até a morte.
Sade era leitor assíduo de Rousseau, tornou-se um de seus maiores críticos, combatendo o idealismo sentimental expresso não só nos romances de Rousseau, mas em quase todos os romances escritos em sua época. Usando a mistura de gêneros num mesmo romance, comum aos escritores do século XVIII, Sade trata os mesmos temas sob outra ordem. Para isso, faz uso da paródia. Os diálogos das vozes extraídas de discursos e contextos distintos se cruzam na narrativa abordada. No caso de Sade, o “discurso do outro”, ou seja, o objeto lingüístico parodiado, é a fala das heroínas tradicionais dos romances de ideologia sentimental, representado nele pela linguagem das vítimas. Todo texto, na verdade:
“é absorção e transformação de outro texto”, ou seja: como qualquer romance polifônico, o texto está sempre fazendo uma leitura de um “corpo literário” anterior na medida em que o absorve. Segundo Kristeva (1974 apud Borges, 2003, p. 210), “há a inserção da história no texto, e do texto na história”.

O idealismo sentimental pode ser detectado em boa parte da literatura e das artes daquele período, seus valores contínuos são: virtude, sensibilidade e moralidade, bem distante de Sade nos seus escritos. A valorização destes dogmas é própria do século das Luzes, o que segundo Nascimento (2008)[21] tem-se nos romances da época representações desse modelo: as heroínas romanescas, por exemplo, são virtuosas, sentimentais, como a Justine de Sade e a Julie de Rousseau. Ao parodiar o discurso sentimental, sobretudo as vozes de suas heroínas virtuosas cujo modelo exemplar é a Julie de Rousseau[22], Sade [23] segundo Borges (2003, p.211) trava uma batalha textual contra a torrente triunfante do sentimento e da sensibilidade. No entanto, nos textos de Sade, há também exemplos da retórica sentimental nas falas de algumas de suas heroínas virtuosas.
Sensibilidade e virtude eram valores cultivados e apreciados também por artistas e filósofos (...). Mesmo Sade parece comungar desses valores em algumas de suas obras, sobretudo na primeira versão de “Justine, ou os infortúnios da Virtude”, e em alguns de seus “Crimes do Amor”. Mas a necessidade imperiosa de afrontar tais valores e destruir-lhes o significado é a tônica de sua literatura.[24]

Isso é perceptível quando depois de falar que a prosperidade pode acompanhar o crime, ele desfaz seu discurso dizendo que “Esta prosperidade do crime é apenas aparente.”[25] Há uma polifonia, dentro de Justine ou Os infortúnios da virtude, é possível perceber que um mesmo enunciador tem várias vozes. Vozes essas, que ao mesmo tempo fazem apologia a natureza criminosa, depois “defende” a virtude, mesmo que em ironia.
4)                 A negação
Conforme Borges (2003), a crueldade sadiana é apenas uma tática de negativa do mundo, uma forma de demonstrar seus sofismas e quão longe se encontra da idealização de felicidade humana.
“A palavra libertina é a lei. “A natureza fala de nós mesmos”. No entanto, só o libertino pode se reconhecer nesse “nós”, só ele pertence à casta privilegiada dos que entendem a “linguagem da volúpia”. É esse ato de reconhecimento que divide o mundo sadiano em duas categorias, os libertinos e as vítimas. Os primeiros são dotados de uma “organização especial” pela natureza e favorecidos por sua condição na sociedade quer como ricos e/ou poderosos. Geralmente os libertinos são os senhores dos castelos ou os bispos das Igrejas onde confinam suas vítimas. Os segundos, as vítimas, são seres virtuosos e sensíveis. Estes naturalmente jamais poderão ouvir a natureza, por estarem imersos em ilusões e preconceitos impostos pela moral e pela religião. Não podem praticar libertinagem violenta porque sua relação com o outro é mediada por sentimentos como a piedade e o amor ao próximo.”[26]
A negação é um dos princípios da erótica sadeana. No romance analisado há vários exemplos que justificam essa negação do outro. As práticas sexuais sugeridas são sempre de submissão e negação, as orgias descritas exemplificam o que Bataille (2004) diz a respeito das orgias, que são decepcionantes, pois são em princípio, negação acabada do aspecto individual.  Não somente a própria individualidade[27] fica submersa no tumulto da orgia, mas cada participante nega a individualidade dos outros (pp.201-2). Veja no trecho abaixo:
“[...] A porta se abriu, e vi em redor de uma mesa três monges e três moças, todos seis na situação mais indecente que possa imaginar. Duas destas jovens estavam completamente nuas, a terceira estava se despindo ainda, e os monges estavam quase nus...” [28]
A negação total de Justine dá-se no desfloramento de sua virgindade. Nas palavras da mesma;
“O infeliz me colocou num sofá na posição própria à prática do ato execrável mandando que Antonino e Clemente me segurassem... Rafael, italiano, monge e depravado, não vacilou em gozar o prazer de um modo ultrajoso, deixando-me ainda virgem. Oh! Que completo desvario! Pois êstes homens abomináveis se vangloriavam de esquecer a natureza na escolha de seus prazeres indignos. Clemente avançou para mim, excitado pelo espetáculo que seu superior lhe oferecera, e mais ainda que observara. Declarou-me não ser menos perigoso do que seu guardião, e que no lugar onde ia prestar sua homenagem deixaria minha virtude sem perigo [...]
—Eis aí as felizes preparações — disse Antonino agarrando-me. —Vem franguinha, vem que eu vou te vingar da irregularidade de meus confrades, e colhêr as primícias antes que me abandone a intemperança...” [29]

Ao descrever a implicação da moral sadeana Maurice Blanchot (apud Bataille, 2004, p.297) fala que a negação dos outros é depois uma negação de si mesmo. Os monges e todos os outros que abusaram de Justine, não somente a nega, mas negam a si próprios.

5)                                         Perversão da Ordem dos discursos
Foucault (1970) elucida a existência duma relação de veneração e temor do discurso, que ao longo da história sempre houve o uso de procedimentos internos e externos para o controle da produção e distribuição dos mesmos. Dentre eles estão postos a interdição, a segregação e as vontades de poder, os quais determinam que certas palavras sejam proibidas, ou seja, que não se pode dizer tudo, em qualquer circunstância. Para o filósofo francês “Sexualidade e política são lugares onde tornam - se mais notáveis tais interdições”.       A transgressão dessa ordem é uma característica presente nos escritos sadeanos, considerado por muitos como uma literatura desmedida que excede o desejável, ultrapassando os limites estabelecidos pela moral e infringindo todos os códigos de conduta, justamente pelo rompimento das interdições sociais. Esse processo seria a relação da oposição da razão e da loucura, que para Foucault (1970) é um princípio de exclusão e rejeição do discurso, já que há uma tentativa imanente de manipulação dessa ordem. Para Foucault (1970) o louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros:
“[...] pode ocorrer que sua palavra seja considerada nula e não seja acolhida, não tendo verdade nem importância [...] pode ocorrer também em contrapartida, que se lhe atribua, por oposição a todas as outras, estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pronunciar o futuro, o de enxergar com toda ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. É curioso constatar que durante séculos na Europa a palavra do louco não era ouvida, ou então, se era ouvida, era escutada como uma palavra de verdade. Ou caia no nada – rejeitada tão logo proferida [...]” [30]

Essas afirmações esclarecem que a palavra é vista como forma de poder, no qual predomina uma soberania que supostamente é detentora da razão e da verdade absoluta. Isso certamente remete a compreensão dos motivos pelos quais o Marquês de Sade era julgado como um louco e os seus escritos considerados absurdos, consequentemente suas obras proibidas de circularem.
 A audácia de Sade em “proferir uma verdade escondida” era uma ameaça à ordem do discurso vigente. Tais posicionamentos desordenados não convinham para as relações de poder existentes na época, sendo assim, era conveniente que seu discurso fosse considerado nulo, insano, sem importância, ocultado pela prevalência da razão.
Em Justine, a ironia sadeana sugere uma inversão da representação do discurso de caridade e abstinência sexual religiosa. É sugerida no texto a tentativa do sacerdote de corromper a moral da jovem Justine, isto é evidenciado no trecho que segue:

“Vendo isto Justine foi procurar o padre da sua paróquia e lhe pediu alguns conselhos. Mas o piedoso sacerdote lhe respondeu de modo equívoco que a paróquia estava sobrecarregada, que impossível era fazê-la participar das esmolas. Mas, se quisesse servi-lo, alojá-la-ia de bom grado em casa, com êle. E ao dizer isto o santo homem lhe passou a mão sob o queixo dando-lhe um beijo muitíssimo mundano para um homem da Igreja. Justine, que tudo compreendeu, retirou-se apressadamente [...]” [31]

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Mas não é somente no âmbito de escandalizar e debochar da Instituição (Igreja), que ele estabelece uma ruptura, mas é ao afrontar toda uma forma de governo e de sociedade escondida em “tabus”, e ao “tirar toda a sujeira debaixo do tapete” que ele rompe. Este rompimento é dado por seu discurso, pelo uso da língua oficial, para criticar as instituições vigentes na época. Estado e Igreja, são ridicularizados, embora reconhecidos, enquanto lugares de produção de poder.
O poder institucional estabelecido no romance contrapõe-se entre a concepção de discurso verdadeiro e falso. Essa vontade de verdade exercida pelo Estado e pela Igreja, onde o poder era centralizado, fazia-se uso da coerção para controlar o discurso, que Foucault trata como um dos sistemas de exclusão:

“[...] O discurso verdadeiro – no sentido forte e valorizado do termo -, o discurso verdadeiro pelo qual se tinha respeito e terror, aquele ao qual era preciso submeter-se, porque ele reinava, era o discurso pronunciado por quem de direito e conforme ritual requerido; era o discurso que pronunciava a justiça e atribuía a cada qual sua parte; era o discurso que profetizando o futuro, não somente anunciava o que ia se passar, mas contribuía para a sua realização, suscitava a adesão dos homens e se tramava assim com o destino [...]”[32]
É importante notar que essa forma de delimitação instalada no discurso preestabelece a monopolização do saber, onde o aparelho do Estado, enquanto soberania exerce o poder, deixando evidente que é a força centralizadora desse poder, sustentada sobre o suporte institucional determinando os procedimentos de controle do discurso.
Partindo desses pressupostos, percebe-se que se trata da imposição de regras para controlar a produção e introduzir ordem ao discurso, visto que, essas regras restringem a inserção do sujeito no discurso, não permitindo dessa forma que todos os indivíduos tenham acesso a ele. Foucault argumenta que a rarefação desta vez é dos sujeitos que falam:

[...] Ninguém entrará na ordem do discurso se não satisfazer a certas exigências ou se não for, de início, qualificado para fazê-lo. Mais precisamente: nem todas as regiões do discurso são igualmente abertas e penetráveis; algumas são altamente proibidas (diferenciadas e diferenciantes), enquanto outras parecem quase abertas a todos os ventos e postas, sem restrição prévia, à disposição de cada sujeito que fala. (FOUCAULT, 1970, p.37)

O Marquês de Sade sempre foi acusado por libertinagem excessiva em sua obra, considerada capaz de destruir o corpo e a alma de qualquer leitor. A tentativa de rompimento das estruturas tradicionais realizada por Sade através do seu discurso considerado leviano e das suas obras maliciosas o levou a ficar um grande período da sua vida recluso em asilos e prisões. Essa estratégia de poder do Estado e da Igreja aponta a rarefação do sujeito que fala, ou seja, o apagamento do sujeito.
 Uma marca relevante da literatura sadeana é a sua relação com o poder institucionalizado, ele sempre trata Estado e Igreja com ironia. Essa ironia se estabelece quando um discurso proferido quer dizer o contrário, que de acordo com Maingueneau (1997; p.98) a ironia subverte o limite entre o que é assumido e o que não o é pelo locutor. Enquanto a negação pura e simplesmente renuncia a um enunciado, utilizando um operador explícito, a ironia possui uma propriedade de poder rejeitar, sem passar por um operador dessa natureza. O locutor se coloca em cena determinado enunciador que toma uma postura absurda e cuja alocução não pode assumir. Maingueneau alerta acerca da transcrição da ironia, já que não é possível recorrer à entonação, a gestos e situações, mas o efeito da ironia é justamente suscitar a ambigüidade.
Na obra apreciada, há a aparição deste recurso como em um questionamento de um dos monges; “Por acaso é natural ser virgem na tua idade (22 anos[33])? / —Não é pois um milagre tua virgindade ter durado tanto tempo...?”(p.84). Também quando remetem a Lucrécia Borgia; “— Meus amigos – disse Rafael entrando- faltava uma, ei-la aqui. Permiti que vos apresente uma coisa extraordinária; Eis uma Lucrécia que traz nas costas a marca das mulheres de má vida ...”(p.83). Lucrécia Borgia, era filha ilegítima do Papa Alexandre VI[34], no século XV, que se casou com o príncipe austríaco Giovanni Sforza aos treze anos, há dúvidas de sua virgindade antes do casamento, e sua vida foi marcada por escandalos que vão desde incesto à orgias com seus irmãos e esposas e até com o pai. Ao aludirem a ela, o monge Rafael, coloca em dúvida a virgindade de Justine, que era uma raridade na conceituação dele. Essa alusão é mais evidente por ambas, Lucrécia e Justine serem loiras.

6)                 Virtude versus vício ou Justiça e Injustiça
Nos escritos sadeanos o conjunto dos preceitos morais vigentes são irrelevantes, Sade coloca-se em posição contrária recusando toda a virtude e crenças religiosas. Adepto das predisposições naturais, em que a natureza determina as intenções, e o bem e o mal são espontaneamente apáticos, Sade era causídico das práticas sexuais tidas na anormalidade, considerando que o equilíbrio natural dependia do vício e da injustiça tanto quanto da virtude e da justiça. O Marquês sem nenhuma prudência violou a ordem das leis, colidiu com a sociedade francesa revolucionando a literatura:
“Se, partindo de nossas convenções sociais e jamais nos separando do respeito que elas que nos inculcaram através da educação, chegar infelizmente a acontecer que, pela perversidade dos outros, não tenhamos encontrado senão espinhos, enquanto os maus colhem apenas rosas [...] E não dirão que a virtude – por mais bela que seja, ocasião em que infelizmente ela se torna mais fraca para lutar contra o vício – venha a ser o pior partido que se possa tomar e que, no caso de um século inteiramente corrompido, o mais seguro é fazer como os outros? [...] e que é essencial para a manutenção do equilíbrio que haja tantos bons quanto maus [...] E também não argumentarão que, se a infelicidade persegue a virtude; e que, se a prosperidade quase sempre acompanha o vício, sendo ambos coisa igual ante a natureza – que vale mais: tomar partido dos maus, que prosperam, ou dos virtuosos, que perecem?” [35]

O livro aborda e dá ênfase ao vício e a injustiça como formas de poder e ascensão, como já antes mencionado. A narrativa transita entre o poder, o excesso, a perdição, o explícito e o vício representado pela figura de Julieta;
“[...] Da condição simples de onde a vimos sair, ela se tornou aos quinze anos numa mulher possuidora de título nobiliárquico, com uma renda superior a mil libras, portadora de jóias caríssimas, duas ou três casas no campo e em Paris, e que, ao mesmo tempo, trazia consigo o coração, a riqueza e a confiança do Senhor de Corville, conselheiro de Estado, homem de grande credito e às vésperas de entrar para o Ministério [...]”[36]
A submissão, o essencial, a salvação, o contido e a virtude problematizados em Justine:  
[...] Justine, sua irmã, ao atingir os doze anos, era possuidora de um caráter sombrio e melancólico, dotada de ternura e sensibilidade surpreendentes, tendo no coração, em vez de arte e da sutileza, uma ingenuidade, uma candura, uma boa fé que a levaria a cair em muitos ardis e faria com que ela sentisse todo o horror de sua posição [...] Quanto mais se considerava o artifício, a astúcia, o coquetismo nos traços de uma, tanto mais se admirava o pudor, a delicadeza e a timidez na outra. [...] [37]

Essas cenas do romance confirmam a posição de Sade perante as regras de conduta social e moral, enfocando sempre que o vício é transcendente a virtude. A irmã libertina, que não é possuidora de virtudes e usa dos mais perversos artifícios para alcançar o status social, é sempre beneficiada com suas ações malevolentes atingindo sempre seus objetivos. No entanto, a irmã virtuosa, cheia de pudor e bondade está sempre recebendo punições pelo seu comportamento ingênuo.
É importante ressaltar que apesar dos sofrimentos e das constantes injustiças pelo o qual Justine passou, e ter tido várias oportunidades de se desviar pelos caminhos do vício, ela não se distancia de seus fundamentos religiosos, revelando-se cada vez mais leal aos princípios aos quais foi alicerçada. Nota-se que Sade insiste em conduzir os princípios da personagem com a mesma intensidade do início ao fim da narrativa, deixando transparecer em alguns momentos que ele também compartilha desses valores, tornando o seu discurso polifônico, pois ao mesmo tempo em que contrapõe a moral vigente ele a insere e a valoriza.

7)                                         Considerações
Sade com uma linguagem que desestabiliza a estrutura da “moralidade” da sociedade ocidental, que “entre risos e rubores” ousam de vez em quando falar de sexualidade, e não somente de sexo reprodutivo. Até o lugar e como falam de sexualidade na atualidade, determina o “vazio” do termo erotismo, como antes já dito, “a eterna alusão”[38]
A língua(gem) como ferramenta de poder, nas mãos deste “louco”, como definiram e ainda definem Sade, toma proporções nunca dantes pensadas, polemizadas. Com a “pena” na mão, o scriptor, como se pode definir Sade, não é um sujeito anterior ou posterior a obra, visto que, seu discurso é atual para os mais variados contextos, e cada leitura reposiciona a discussão ou não da sexualidade, âmbito em que todos que leem sentem-se atingidos diante deste scriptor atemporal.
A ideia de uma sociedade baseada na moral é utópica, e é “posta de lado”, quando Sade defende a pulsão humana criminosa enquanto vantagem. Há rupturas dos textos filosófico, religioso e estatal que dão-se na estrutura de críticas diretas e indiretas em Justine ou Os infortúnios da virtude. Quem ousaria tanto? Quem se oporia tão claramente a estrutura e distribuição de poder vigente em sua época? Sade assim o fez, ou será que não? Vale lembrar que a sociedade ocidental, não discute sexualidade, no cerne do erótico. Ela apenas alude. Os livros do Marquês, não continuam sendo vendidos como Carpeaux diz: “debaixo dos balcões”. Não só Sade, mas como também outros escritos ditos eróticos, tem sua procura, venda e leitura cercada por melindres, na maioria das vezes, e, quem os lê em público  corre o risco de ser considerado tão devasso, louco, quanto Sade.

8)                                         Referências

BARTHES, Roland.  O Prazer do texto; trad. J. Guinsburg. 4ª ed. São Paulo: Ed. Perspectiva. 2008.

BARTHES, Roland. Comentários. In: SADE, Marquês de. Os Infortúnios da Virtude. Trad. Celso Mauro Paciornik –. São Paulo: Iluminuras, 2008.

________________. A morte do autor In: O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes. 2004. Disponível em: http://littric.blogspot.com/2008/07/morte-do-autor-roland-barthes.html - Acesso em 05/06/2010

BATAILLE, Georges. O erotismo. Trad. Cláudia Fares – São Paulo: Arx, 2004.

BORGES, Contador. Introdução. In: SADE, Marquês de. Os Infortúnios da Virtude. Trad. Celso Mauro Paciornik –. São Paulo: Iluminuras, 2008.

_______________. Tradução, posfácio e notas. In: SADE, Marquês de. A Filosofia na Alcova, ou Os Preceptores Imorais. 3 ed. São Paulo: Iluminuras, 2003.

CHARAUDEAU, Patrick.; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do discurso. Coordenação de trad.: Fabiana Komesu - 2ª ed. – São Paulo: Contexto, 2008.

FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. Trad.: Laura Fraga de Almeida Sampaio – 18ªed. - São Paulo: Loyola, 2009.
_________________. Vigiar e Punir, história da violência nas prisões. Trad. Raquel Ramalhete — 37ª ed. Petrópolis, Vozes, 2009.

HUTCHEON, Linda. Poética do pós - modernismo: história, teoria, ficção. Trad. Ricardo Cruz ― Rio de Janeiro: Imago Ed., 1991.

GIDDENS, Anthony.  A transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo nas Sociedades Modernas. Trad. Magda Lopes – São Paulo: Ed. UNESP, 1993.

GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso- diálogos & duelos. 2ªed. São Carlos, SP: Claraluz. 2006

MAIGUENEAU, Dominique. Elementos de linguística  para o texto literário, trad.: Maria Augusta Bastos de Mattos. - São Paulo: Martins Fontes, 1996

SADE, Marquês de. Justine ou Os Infortúnios da Virtude. Trad. D. Accioly – 2ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Saga, 1968.


[1] Discentes do curso de Letras, turma 2008.2, Universidade do Estado da Bahia - Departamento de Ciências Humanas e Tecnológicas - Campus XVI – Irecê – BA.
[2] Docente Orientador
[3] Em Prefácio de Justine ou Os infortúnios da virtude, 1968.
[4] V. FOUCAULT, 1970.
[5] Hutcheon, 1991, p.235
[6] Na tradução analisada Juliette é traduzida como Julieta.
[7] SADE, 1968, p.20
[8] Na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras.
[9] Foucault. M. A História da Sexualidade III- O cuidado de si. 1985
[10] SADE, 1968, p.20
[11] Na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras
[12] SADE, 1968,p. 20
[13] SADE, 1968, p.20
[14]  Grifo do autor
[15] BARTHES, 2008, p.17
[16] Opta-se neste artigo pela ortografia vigente em 1968, ano da tradução em que se baseia o estudo.
[17] BARTHES, 2004, p. 5
[18] SADE, 1968, p.22

[19] SADE, 1968, p.24
[20] SADE, 1968, p.25
[21] UFCG
[22] Ora, no século XVIII, segundo afirma Borges (2003, p. 224), “as duas correntes simétricas e opostas, a sentimental e a materialista, conheceriam seus representantes mais radicais em Rousseau e Sade, No primeiro, a alma não tem corpo, e seu fundamento é Deus, no segundo, o corpo não tem alma e deposita na natureza seu fundamento”.

[24] BORGES, 2003, p. 213
[25] SADE, 1968, p.26.
[26] Borges, 2003, pp. 222-3
[27] A individual esta para a fantasia, que não depende do outro, mas é possível realizar-se somente com um indivíduo, na orgia, a negação do outro implica este individualismo. No nível pessoal está o fetiche, onde o desejo se concentra num objeto, que pode ser o corpo alheio, a maioria das cenas sugeridas por Sade em Justine ou Os infortúnios da virtude há a relação erótica fetichista, onde o corpo tanto de Justine, quanto de Julieta são objetos do desejo alheio, diferindo no que se refere à Julieta, que ao mesmo tempo em que é objeto desejado, é sujeito desejante.
[28] SADE, 1968, p.83

[29] SADE, 1968, pp.86-7
[30] FOUCAULT, 1970, p.10,11

[31] SADE, 1968, p. 21
[32] FOUCAULT, 1970, p.15

[33] Grifo nosso.
[34] É uma característica comum dos papados do Renascimento, os eclesiásticos possuírem mulheres.
[35] (SADE, 1968, pp.17-8)
[36] (IDEM, 1968, pp. 21-2)

[37] (SADE, 1968, p.19)
[38]  Barthes, na contracapa de Os infortúnios da virtude. Ed. Iluminuras


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CAPITU: PRA QUE SABER? RECRIAÇÃO DE CAPITU NA CONTEMPORANEIDADE

Adriana Maria de Souza Novais *
Amanda da Silva Cascaes
Graziela Sousa Lima
Mariana Dourado Vasconcelos
Ricardina Pereira Duval Neta
Ricardo Araújo Alves
Maria Aurinívea de Assis**

RESUMO: A partir da observação acerca da representação da mulher na literatura brasileira, busca-se, nesse artigo, traçar o paralelo entre a mulher em Dom Casmurro, de Machado de Assis, e a recriação da figura feminina na contemporaneidade, no texto Capitu: Para que saber?, de Lya Luft, presente no livro Quem é Capitu? Para isto, propõe-se analisar a personagem de nome Capitu, criada por Machado de Assis que, passado mais de um século de sua criação, continua sendo o maior enigma feminino da literatura brasileira. Pretende-se evidenciar a figura feminina de Machado de Assis em contraponto a literatura contemporânea de Lya Luft, realizando o deslocamento do percurso da voz masculina para a voz feminina. Para fazer tal análise a metodologia adotada foi a de pesquisa bibliográfica.


Palavras - chave: representação feminina, Capitu, recriação e literatura.


1.  REPRESENTAÇÕES DA MULHER NA LITERATURA

Por meio desse estudo procura-se entender a representação da figura feminina na personagem de Capitu que permite pensar a problemática social da mulher no contexto histórico do final do século XIX, época em que foi publicada a obra.
No século XVII, a mulher limitava-se ao silêncio e permanecia sob o jugo da sociedade, estando submissa a família, ao esposo e aos afazeres domésticos, ficando à margem de intervir nas questões políticas e sociais.
A representação da mulher na literatura assumiu moldes ditados por uma sociedade em que a figura masculina infundiu sua própria ideologia de mulher perfeita. A imagem da mulher era passada através de uma literatura a partir da visão masculina.
A representação da figura feminina foi idealizada pela maioria dos escritores masculinos a partir de modelos da Europa Imperialista com perfil de mulher completamente diverso da mulher “real”, descrevendo três tipos de comportamentos divergentes: mulher-anjo, mulher-sedução e mulher-demônio.
Segundo Ívia Alves no livro Interfaces, as loiras simbolizam a mulher-anjo, percebe-se isso claramente na figura de Ceci, personagem de José de Alencar em O Guarani. A mulher-sedução é representada nas personagens morenas e exprimem sentido pecador e tentador, características estas que não fazem parte da mulher ideal. A terceira, mulher-demônio, aquela não aceita pela sociedade, se refere à prostituta.


2. A CAPITU MACHADIANA

A obra machadiana foi publicada em 1899, é um dos romances brasileiros mais traduzidos para outros idiomas, cujo sucesso de crítica rendeu algumas adaptações para a televisão e para o cinema. Sem falar nas releituras e reescritas devido à grande ambiguidade existente no romance.
 Seu enredo decorre na cidade do Rio de Janeiro do II Império e narra em primeira pessoa a historia de Bentinho e Capitu. Segundo a crítica tradicional, a contestação mais comum na obra é a do adultério, o narrador-personagem procura, através da manipulação, induzir o leitor a autenticar o que lhe é mais comum: o ciúme.
Machado faz uma forte crítica à imposição social que principalmente a Igreja Católica faz à mulher oitocentista, empregando, como diz Ivia Alves, ”modelações”, padrões pré-estabelecidos que Bentinho em sua fala personaliza na figura de sua mãe ao chamá-la de boa criatura, possuidora de todas as virtudes que revela uma mulher perfeita.

Procura no cemitério de S. João Batista uma sepultura sem nome, com esta única indicação: Uma santa. [...] A minha ideia é dar com tal palavra uma definição terrena de todas as virtudes que a finada possui na vida (p.173).

Na obra machadiana, a voz feminina dificilmente aparece. A mulher é vista como um apêndice com relação ao homem, sendo reprimida, abafada. O narrador-personagem expressa o seu próprio desejo em relação à Capitu e julga-a pautado em uma memória passiva de engano, despertada por um sentimento de ciúme e de remorso.
            A personagem central do enigma aparece na narrativa machadiana no capítulo XIII, aos 14 anos, como figura idealizada por Bentinho, como se percebe na voz deste narrador-personagem:

Não podia tirar os olhos daquela criatura de catorze anos, alta, forte e cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos grossos, feitos em duas tranças, com as pontas atadas uma à outra, à moda do tempo, desciam-lhes pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz reto e comprido, tinha boca fina e o queixo largo. As mãos, a despeito de alguns ofícios rudes, eram curadas com amor, não cheiravam a sabões finos nem água de tocador, mas com água do poço e sabão comum trazia-as sem mácula. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma dera alguns pontos (p. 22).

No trecho acima, percebe-se a maneira com que o narrador-personagem descreve Capitu ainda jovem, dando-lhe aspectos de mulher morena, sensual, ingênua e simples, aspectos estes que aparecem descritos por Ívia Alves, como parte integrante da mulher-sedução que ora é pecadora, ora é sedutora, com inteligência e argúcia. A ambiguidade impregnada nessa figura fascinante que trazia as “mãos sem mácula” denuncia uma possível mancha posterior. Bentinho consegue apontar desde muito cedo, o que ele percebe como sendo sinais de dissimulação na personalidade de Capitu. No momento em que esta rabiscava o seu nome e o nome de Bentinho no muro, e sendo surpreendida pelo pai, rapidamente consegue criar uma nova situação, o despistando e fazendo-o acreditar que estava desenhando um perfil que podia ser dele ou o de sua mãe, enquanto Bentinho permanece inerte e conclui:

Há cousas que só se aprende tarde; é mister nascer com ela para fazê-las cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde (p. 25).

Mais tarde, o olhar de Capitu é comparado ao de uma “cigana oblíqua e dissimulada”. O narrador-personagem retrata, nessa expressão, a presença marginal da cigana e o olhar não confiável, que passa a ser uma das características mais marcante em Capitu, esse olhar que fascina e envolve o narrador-personagem de tal forma que, em uma “retórica dos namorados” (p.49), este o compara ao mar em dia de ressaca que possuía uma força que o arrastava para dentro: “Olhos de ressaca? Vá de ressaca [...] a envolver-me, puxar-me e tragar-me” (p.49).
Extraindo a voz da personagem Capitu, Casmurro dá vazão a memórias presas ao jugo do ciúme e do remorso, deixando uma lacuna que possibilitou o grande enigma que é elemento do enredo.
Machado de Assis, em sua imaginação criadora, usou da ironia fulgurante e corrosiva, para questionar esse lugar-molde da mulher. No livro Dom Casmurro, monta a trajetória que é comum à mulher da época: ser filha, esposa e mãe.
Na posição de esposa, o narrador-personagem descreve a cena em que Capitu se apresenta ansiosa em expor o seu estado de casada em um evento de extrema relevância e recompensa pelo comportamento, diante da sociedade: “Não lhe bastava ser casada entre quatro paredes e algumas árvores; precisava do resto do mundo também” (p. 134).
Uma outra parte neste enigma era Escobar, a quem Bentinho tinha conhecido no seminário e por quem possuía grande confiança e amizade. É no momento em que Escobar falece, arrastado pela ressaca do mar, que Bentinho “mordido pelo dente do ciúme” percebe que Capitu aguçava um sentimento intenso comparado ao da viúva:

Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar também o nadador da manhã (p. 157).

O narrador-personagem prossegue até o final do enredo, apresentando argumentos e contra-argumentos, tendo o leitor liberdade em se deixar levar ou não. O desfecho da história, descrito por Bentinho, conclui:

É bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabasse juntando-se e enganando-me... (p.180).


3.  RECRIAÇÃO DE CAPITU NO CENÁRIO CONTEMPORÂNEO

O enigma de Capitu continua instigando o imaginário de leitores, escritores e críticos, que envolvidos pela polêmica desta personagem da literatura machadiana que provoca, atrai, apaixona e intriga, mas nunca se dá por inteira, nem tampouco cede ao desejo do outro, desperta o interesse de recriá-la, dando-lhe diversas nuances e roupagens, e que em sua maioria conservam a ambiguidade presente no enredo machadiano. 
O livro Quem é Capitu?, organizado por Alberto Schprejer, reune 15 dos grandes escritores, ensaístas e personalidades que recriaram a mais intrigante e ambígua personagem da literatura brasileira. Schprejer, no texto Vamos a história dos subúrbios, apresenta Capitu como “a personagem feminina mais polêmica, mais importante, ou mesmo mais bonita da literatura brasileira [...] Uma feminista antes do feminismo”. (p. 8-9)
Nesta obra, a atriz Fernanda Montenegro expressa, no texto Uma Nação Capitu, suas impressões e atribui o olhar de ressaca de Capitu aos olhos de todas as brasileiras: “Esse olhar nos pertence. E só a nós. É um patrimônio do feminino brasileiro” (p. 13).
Ao contrário da obra machadiana, Fernando Sabino em Amor de Capitu, recria o romance de Dom Casmurro narrando-o em terceira pessoa, apresentando um novo ponto de vista na busca de solucionar o mistério, enriquecendo-o e abrindo uma nova possibilidade de leitura.
Na composição musical intitulada Capitu, de Luiz Tatit, interpretada por Zélia Duncan, Capitu é cantada em suas múltiplas faces, “a mulher em milhares”, reforça a impressão de Fernanda Montenegro ao comparar o olhar de Capitu a de todas as brasileiras, como se pode ler no trecho abaixo:
“Capitu
A ressaca dos mares
A sereia do sul
Captando os olhares
Nosso totem tabu
A mulher em milhares”

A música desmistifica os estereótipos de beleza construídos pela sociedade e refletido na arte e na literatura e acrescenta a valorização dos sentimentos femininos:
“Capitu
Feminino com arte
A traição atraente
Um capítulo à parte”

            A obra machadiana foi traduzida para o cinema e para a televisão com a produção cinematográfica de Dom, filme brasileiro de 2003, com roteiro e direção de Moacyr Góes, e com a minissérie da Rede Globo intitulada Capitu.
4. A CAPITU DE LYA LUFT

No livro Quem é Capitu?, o texto ficcional Capitu: para que saber?, de Lya Luft, faz uma reeleitura através da lacuna de ambiguidade existente na obra machadiana, dando voz a Capitu, ora ocultada pelo narrador-personagem de Machado de Assis.
O questionamento no título de seu texto deixa explícita a irrelevância considerada pela a autora em desvendar o mistério da suposta traição de Capitu, pois o que é realmente relevante é a ambiguidade encontrada na obra, o que dá liberdade ao leitor em escolher um desfecho para a história. Como dizia Proust, citado na obra, “os melhores romances são aqueles que não terminam, ou seja, são aqueles que continuam sendo lidos e gerando novas leituras pelo tempo a fora” (p.11).
Lya Luft inicia o texto descrevendo o despertar literal de Capitu, trazendo à tona reflexões e questionamentos relacionados à sua existência como mulher: “Acordo. Bentinho já se foi” (p.75). Nesse trecho, Capitu evidencia sua percepção de existência, expressando um alívio pela ausência de Bentinho.  
Narrado em primeira pessoa, o texto de Lya Luft descreve Capitu, seus desejos e anseios, expondo suas insatisfações frente à condição de esposa e dona de casa. Ela se sente sufocada em sua condição de mulher no século XIX, a qual não tinha o direito de expor seus desejos sem que fosse recriminada por todos: “... vejo os olhos graves e a boca severa de minha mãe, os de meu pai nem posso imaginar...” (p. 75). A Capitu de Luft mostra-se insatisfeita, enquanto que em Dom Casmurro é aquilo que o narrador-personagem oculta e não o que ele descreve.
Rodeada por sentimentos cotidianos do casamento, Capitu tem a sensação de estar sendo espionada pelo fantasma do “aborrecimento pegajoso, de não saber mais nada” e questiona-se a respeito da sua vida, mostrando-se por inteira em seus mais íntimos desejos:

O que é minha vida? Como está minha alma, o que sente o meu corpo? Nem vou indagar o que deseja porque isso é secreto até para mim mesma, mas deveria ser assim? (p. 75)

Capitu apresenta-se senhora de si, dona de sua própria voz, envolvida pelo véu da ambiguidade que lhe é intrínseco, devaneia entre o sonho e a realidade, o desejo do que foi em contraponto ao que vive.
No texto Capitu: para que saber?, Capitu permite se envolver pelo seu sentimento de insatisfação pela vida que leva, e vê em seu amigo Escobar um refúgio, a personificação de seu desejo, uma fuga da monotonia em que vive: “O que existe em Escobar que ultimamente me atiça tanto quanto meu marido me entedia?” Não afirma e nem nega a traição e faz uma descrição do que seria essa loucura, narrando seus momentos com Escobar.

Era como se eu estivesse sonâmbula, era um sonho, um sonho apenas... e num quarto em penumbra estávamos tão apressados, tão sôfregos que nem tiramos a roupa, era um esfregar de pele, um apalpar fortíssimo, um procurar e encontrar lugares maravilhosos um no outro. (p. 79)

Capitu afirma ser, pela primeira vez, ela mesma, dizendo que não se conhecia dizendo-se “livre, forte, poderosa e onipotente” (p. 80) Mas a noite, no desalinho da cama, se questiona se tudo aquilo era sua vida real, ou mero sonho, do qual definitivamente não queria acordar: “Ou minha realidade é meu amante, e o cotidiano apenas um sonho sem nenhum encantamento [...]?” (p. 81).
Tendo sua maior e última realização como mulher do século XIX, Capitu encontra-se grávida: “Eu, a estéril, engravidei” (p.81) Vivendo esse grande momento, Capitu diz deixar de ser a Capitu cigana para se tornar “a matrona cheirando a leite e bebê”. Mesmo nesse momento, Capitu enfatiza o distanciamento que a gravidez lhe proporciona em relação a Bentinho: “A gravidez vai ser uma boa desculpa para não haver sexo entre nós...” (p.81).
O sentido ambíguo do texto continua personificado neste filho tão desejado, a própria Capitu diz-se perturbada com certas inquietações:

“Vai ser fruto da Capitu, bem assentada (ou conformada) ou da louca (talvez feliz)? Vai ser filho deste meu leito conjugal apaziguado ou de lençóis cheirando a pecado?” (p. 82).

A linha entre a fantasia e a realidade já tão conhecida da narradora-personagem, reforça-se nesta tênue ambiguidade em que ela própria não sabe a verdade do que aconteceu, se tudo aquilo realmente existiu ou se foi só um devaneio do seu imaginário e se questiona: “Qual a importância disso agora? Ninguém saberá”. Diante desta nova condição de mulher, declara-se salva. 
O misterioso conflito de Dom Casmurro que atravessou o século XX e adentra o século XXI, persiste no imaginário de vários leitores e escritores: Capitu traiu Bentinho? Há uma ponte entre este questionamento que está diretamente ligada à interpretação do próprio leitor, a qual desenvolvendo a leitura chegar à sua própria conclusão sobre este enigma, visto que, a obra deixa lacunas quanto à afirmação ou negação da traição.
Contudo, as características como apaixonante, desafiadora que se extrai da obra, a que se considerar uma corrente linha de argumentos demolidores e definitivos que aprovam a traição de Capitu, dentre elas está a de Dalton Trevisan: “Se Capitu não traiu Bentinho, Machadinho chamou-se José de Alencar”. Outros argumentam de forma tão magnífica e acreditam que Capitu jamais traiu e que Bentinho era um completo delirante; misto de Otelo e Hamlet, em busca de vingança pela traição que só teria ocorrido em sua fantasia.


REFERÊNCIAS

ALVES, Ivia. Imagens e representações da mulher na literatura. In: Interfaces. Ilhéus. Ed. Editus, 2005.

Capitu traiu Bentinho? Disponível em <http://www.vidadeestudante.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=26>  Acesso em 07/08/2010.

Dica de livro: Quem é Capitu?. Disponível em <http://www.atarde.com.br/cultura/noticia.jsf?id=922148> Acesso em 04/08/2010.

Resumo de Dom Casmurro. Disponível em <http://resumos.netsaber.com.br/ver_resumo_c_27.html> Acesso em 04/08/2010.

SCHPREJER, Alberto. (Org.) Quem é Capitu? Rio de Janeiro. Ed. Nova Fronteira, 2008.



* Graduandos em Letras pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB CAMPUS XVI, Irecê-BA.
** Professora Doutoranda da UNEB, Campus XVI, Irecê-BA.

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Mito do Herói em O Guarani

Fabiana Dias*
Magali Santana
Mauro Jakes
Milton Cardoso
Regimária Farias
Sônia Marlene Figueredo
Taciane Santos

Aurinívea de Assis**
RESUMO
O presente artigo estuda sobre a personagem Peri, no romance O Guarani, de José de Alencar, com o objetivo de desmistificar a idealização do índio brasileiro, sacralizado pelo referido autor. Será abordada a produção romanceada de Alencar quando o mesmo busca uma afirmação da identidade nacional, construindo personagens heroicizadas, inspirados pelo modelo romântico europeu, escolhendo o índio como símbolo da raça brasileira. Busca-se analisar esse personagem retratado como herói emblemático por meio de características como força, bravura, bondade, coragem, harmonia constante com a natureza.
Por meio desses subsídios, procura-se entender quem é esse herói erigido por Alencar com a intenção de fundar mitos de origem para o Brasil, resgatando a idéia do “bom selvagem”, visando afirmar uma identidade nacional através dessa imagem perfeita do índio brasileiro. O autor faz calar a voz do indígena, refém de um processo contínuo de desculturação e aculturação, desconsiderando sua identidade, como bem fez Caminha e tantos outros cronistas coloniais.

Palavras-chave: Identidade nacional, sacralização, Mito, Herói
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*Discentes do curso de Letras, turma 2.009.2. Universidade do Estado da Bahia – Departamento de Ciências Humanas Tecnológicas – Campus XVI – Irecê-Ba.
**Professor orientador

INTRODUÇÃO
Propõe-se uma análise do referido romance de José de Alencar que, quando jovem, foi um apreciador dos textos dos cronistas coloniais. Desse modo, ao traçar um perfil de índio, considerou alguns aspectos já descritos por Pero de Magalhães Gandavo e por Soares Sousa, por exemplo. Assim, Alencar descreve o ritual antropofágico dos Aimorés seguindo detalhes já apresentados por Gandavo.
O trabalho organiza-se, primeiramente, com a contextualização da obra e o testemunho da preocupação de José de Alencar com o tema nacional expresso na imagem do índio. Traça-se um perfil do Romantismo, destacando a estrutura nacionalista e a edificação mítica e idealizada em torno do indígena e, finalmente, desmistificando essa imagem do herói, dialogando com Alfredo Bosi no texto, “Um Mito Sacrificial: O Indianismo de Alencar”, em Dialética da Colonização.

CONTEXTUALIZAÇÃO DO AUTOR E A ESCOLHA DO HERÓI

José de Alencar é considerado o mais importante autor romântico brasileiro, suas obras elaboraram, através da valorização dos elementos naturais, um retrato da cultura brasileira, mesclada de idealizações e imagens gloriosas dos povos indígenas.
Inicia seus estudos acadêmicos aos quinze anos, em 1844, matricula-se à Faculdade de Direito de São Paulo, mas é na literatura que excita seu deslumbramento. Começa a publicar seus primeiros textos em algumas revistas estudantis, onde encontra a literatura dos antigos cronistas coloniais, como Gabriel Soares de Sousa e Pero Magalhães Gandavo, frutos da sua inspiração acrescida de detalhes líricos e dramáticos. Inicia sua carreira de romancista, publicando o curto romance Cinco Minutos. Estimulado pelo sucesso do primeiro, logo começa a publicar um segundo romance A Viuvinha. Logo após, publica O Guarani, em 1857.
Começa, então, a crença da utopia das riquezas inesgotáveis e a perfeita conciliação entre o homem e a natureza. A partir daí, o processo de construção do nacionalismo literário adquire outras cores, outros elementos, outras características.
O Guarani significa o indígena brasileiro como observa o próprio Alencar, nas notas ao livro. Peri, protagonista da história, seria não só representante da grande nação tupi-guarani, como também o símbolo do autóctone brasileiro em geral.
A Independência despertou uma busca por afirmação e identidade, apesar de o cenário nacional evidenciar uma situação confusa e um grave atraso, devido à permanência do sistema escravocrata e de um povo manchado pelo sistema colonial.
Na perspectiva de ampliar as possibilidades do futuro e redignificar a sociedade brasileira, os escritores da época, inspirados pelos ideais liberais do Romantismo, buscam na literatura uma forma de superar a fase colonial, valorizando traços do caráter nacional.
É a partir do nacionalismo romântico, que nasce o que se pode chamar de “literatura brasileira”, por um lado, espécie de cópia dos modelos estrangeiros e, por outro, cedendo espaço, abrindo caminhos, para as nossas peculiaridades nacionais.
A construção da identidade nacional brasileira é marcada pela negação da diversidade cultural existente no país, principalmente na constituição da literatura que na sua formação sofreu forte influência do modelo romântico do século XVIII.
É fortalecido, nas obras de José de Alencar, a mitologia do índio como antepassado guerreiro e herói, como símbolo de extrema perfeição, aproximado aos cavalheiros medievais da Idade Média européia. Desta forma, essa visão exótica nega a presença de outras culturas como a negra, tão imprescindível na formação da identidade nacional. Sob esta ótica de considerar uma cultura como universal, Zilá Bernd, em Literatura e Identidade Nacional, considera que o exotismo desvaloriza as experiências, os relacionamentos e a forma de viver de um povo:

[...] O princípio que rege o exotismo é paradoxal: [...] Com o exotismo, a visão exótica é fundada no paradoxo, pois é “um elogio baseado no desconhecimento”, ou no conhecimento apenas daquilo que o outro tem de imediatamente reconhecível como diferente. (BERND, 2006, P.53)

Essas obras intentam projetar modelos formadores desta nacionalidade, por meio de qualidades e características fortemente supervalorizadas. Nessa perspectiva, Alencar cria a primeira de suas obras de característica indianista, O Guarani.
O mérito da mitologia alencariana consiste justamente no entendimento do processo histórico ocorrido logo depois da Independência do Brasil. Era de supor que o indígena tornar-se-ia o Herói do Romantismo, por ser, por direito e naturalidade, americano. Mas, não foi isso o que aconteceu. Ao invés de o índio ser tomado com a voz de libertação do jugo português, tornou-se servo da ex-Colônia.

Segundo esse desenho de contrastes, o esperável seria que o índio ocupasse, no imaginário pós-colonial, o lugar que lhe competia, o papel de rebeldia. Era, afinal, o nativo por excelência em face do invasor; o americano, como se chamava, metonimicamente, versus o europeu. (BOSI, P.177)

PERI: HERÓI OU NÃO?

O romance O Guarani é símbolo de um passado idealizado, onde o sentimento nativista e a valorização do índio ganha tons de intrepidez e exagero. O índio é mostrado já aculturado e dominado pelo europeu, a adoração do índio por Ceci demonstra que o indígena na visão de Alencar sentia-se submisso: “ ... O índio humilde e submisso fitava um olhar profundo de admiração sobre a moça que tinha salvado...” (2009, p.96)
Peri é apresentado em um cenário selvagem, emerge como elemento da natureza, símbolo da cor local. Ao descrever Peri, Alencar ressalta:

“... a alvura diáfana do algodão, a sua pele, cor do cobre, brilhava com reflexos dourados; os cabelos pretos cortados rentes, a tez lisa, os olhos grandes com os cantos exteriores erguidos para a fronte; a pupila negra, móbil, cintilante; a boca forte, mas bem modelada e guarnecida de dentes alvos...” (2009, p.23)

Ao mesmo tempo em que acentua ao máximo a “cor local”, Alencar idealiza o primitivismo brasileiro, principalmente, através do cenário, do heroísmo e do amor cortês dos romances de cavalaria medievais. Peri idolatra sua senhora, que para ele personifica a imagem de Nossa Senhora, dedicando-se inteiramente a sua Ceci. Esta cena nos remete as cantigas de amor trovadorescas onde o apaixonado vive uma eterna vassalagem amorosa. Conforme os trechos abaixo:
“- Peri é escravo da senhora.” (2009, P.108)
“... sabia do império que exercia sobre a alma de Peri a imagem de Nossa Senhora, que ele tinha visto no meio de um combate e havia personificado em Cecília.” (2009, p.110)
“- Escuta, Peri é filho do sol; e renegava o sol se ele queimasse a pele alva de Ceci. Peri ama o vento; e odiava o vento se ele arrancasse um cabelo de ouro de Ceci. Peri gosta de ver o céu; e não levantava a vista, se ele fosse mais azul do que os olhos de Ceci.” (2009, p.123)

Percebe-se nitidamente nas obras de Alencar que os índios se tornam sujeitos a partir da aproximação com o colonizador, a partir da qual o índio expressa seu sentimento de devoção, num processo de aculturação. Não existe uma relação dialética entre o índio e o colonizador. Esse fato é reforçado quando Peri nega a sua cultura de origem e sobrepõem a esta a cultura dos brancos. Nesse percurso Alencar buscou associar as características naturais do índio ao modelo europeu, deste modo, o índio apresenta superior força física, e conforme as palavras de D. Antonio de Mariz, “Peri é um cavaleiro português no corpo de um selvagem”. (2009, p. 43).
O índio ocupa um lugar secundário nas obras alencarianas, eleito como herói a partir da sua entrega incondicional ao branco, sacrificando-se em favor deste, abandonando sua identidade.
Em O Guarani, primeira obra de característica indianista de Alencar, percebe-se fortemente o desejo da criação de uma identidade nacional, quando o autor idealiza o índio como portador de uma bondade excessiva, considerando-o obediente, gentil, submisso, valente, ágil, fiel e bom selvagem, respeitado pelos inimigos. Peri abandona sua tribo quando descobre que sua mãe fora salva por D. Antonio de Mariz, colocando-se à sua disposição e a seu serviço.
“... D. Antônio volvia os olhos... para o selvagem que surgira, como um benfazejo das florestas brasileiras”. “[...] não sabia o que mais admirar, se a força e heroísmo com que salvara sua filha, se o milagre de agilidade com que se livrara a si próprio da morte[...] conhecia o caráter dos nossos selvagens [...] sabia que fora da guerra e da vingança eram generosos, capazes de uma ação grande, e de um estímulo nobre”... Por fim D. Antônio [...] caminhou para o selvagem e estendeu-lhe a mão com gesto nobre e afável; o índio curvou-se e beijou a mão do fidalgo”. ( 2009, p.96)

O índio Peri torna-se respeitado, desde o momento em que salva Cecilia de uma avalancha de pedras, filha de d. Antonio de Mariz, recebendo deste a mais alta gratidão.

[...] –“Eu sou um fidalgo português, um branco inimigo de tua raça, conquistador de tua terra; mas tu salvaste minha filha; ofereço-te a minha amizade.” (2009, p. 97).

Recebendo também o afeto desta moça, a menina meiga, pura, de olhos azuis, loira e ingênua, que surge de um ambiente romanticamente selvagem, das matas virgens, sendo a partir de então constantemente vigiada, adorada e enaltecida por Peri que é capaz de gestos simples e grandiosos por sua senhora (era como se referia a Ceci), como buscar-lhe uma flor ou um pássaro, bem como aprisionar uma onça viva para, simplesmente, realizar um dos caprichos da moça, podendo vê-la feliz.

[...] “Peri adorava... o selvagem se mataria, se preciso fosse só para fazer Cecília sorrir. (2009, p.50).
“Para ele essa menina, esse anjo louro, de olhos azuis, representava a divindade na terra; admirá-la, fazê-la sorrir, vê-la feliz, era o seu culto...” (2009, p.55).

A narrativa começa seus momentos épicos, quando D. Diogo de Mariz (filho de D. Antônio de Mariz), durante uma caçada mata uma indiazinha aimoré. Indignados, os aimorés procuram vingança e tentam assassinar Ceci quando esta tomava banho no rio, mas são surpreendidos por Peri, fiel escudeiro de sua senhora. Seu instinto o faz perceber sinais de presença estranha, e para proteger a vida de Cecília se atira às flechas lançadas pelos aimorés em direção a ela, e num movimento ágil, dispara sua pistola, acertando os índios que caem desfalecidos.

“[...] Mas Cecília corria perigo, e, portanto não refletiu, não calculou... Ergueu-se então... “De um só movimento tomou à cinta as pistolas que tinha recebido de sua senhora, e despedaçou a cabeça dos selvagens.” (2009, p.61.)

Mesmo ferido, Peri segue uma índia que conseguira fugir, na tentativa de impedi-la de contar o ocorrido à tribo dos aimorés, ele trava uma luta ferrenha entre a vida e a morte, sabendo que deveria viver para continuar a proteger e salvar Ceci, e, sendo filho das florestas, é conhecedor da árvore do bálsamo, a cabuíba, e estende o óleo sobre o ferimento, que estanca o sangue imediatamente: “... Estendeu o óleo sobre a ferida, estancou o sangue e respirou. Estava salvo.” (2009, p.62)

Movidos pela vingança, os aimorés resolvem atacar as habitações de D. Antonio de Mariz, Peri, conhecendo a ferocidade desta tribo que é vista sem pátria, sem religião, que se alimentam de carne humana e vivem como feras, temia o que pudesse suceder à casa de D. Antonio.
Interessante destacar como José de Alencar foi influenciado pelo cronista colonial Gandavo, eles se assemelham inclusive na descrição dos personagens. Esta relação pode ser percebida observando-se o livro Tratado da terra do Brasil. Historia da província Santa Cruz, de Gandavo:


[...] vivem entre os matos como brutos animais [...] Estes Aymorés são mui feroz e crueis, não se pode com palavras encarecer a dureza desta gente” [...]vivem entre os matos como brutos animaes (GADAVO, 1980 p.34)

... Não se acha nella F, nem L, nem R... porque assi não tem Fé, nem Lei, nem Rei... (GANDAVO, 1680 p.52)
“... Não dão vida a nenhum cativo, todos matão e comem...” (GANDAVO, 1980 p.54).

“ Homens quase nus, de estatura gigantesca e aspecto feroz; [...] “armados de grossas clavas e arcos enormes harmonia sinistra que revelava os instintos dessa horda selvagem reduzida à brutalidade das feras.” ( 2009, p. 209)


Sendo assim, Peri compreende que a invasão dos aimorés trará ruínas à fortaleza de D. Antonio de Mariz, a luta que irá se travar com certeza aniquilaria a família de Ceci, uma vez que os aimorés eram muito numerosos. De fato a luta é travada e Peri se dando conta que estavam quase destruídos, tenta uma solução de bravura. Dá-se um dos momentos mais “heróicos” da narrativa, Peri revelando sua extrema valentia e devoção se oferece como vítima sacrificial, envenena seu corpo para se entregar como prisioneiro aos aimorés, pois conhecedor do ritual de antropofagia dos aimorés, sabe que morrendo ele, estaria aí a salvação da casa de D. Antonio, após devorarem sua carne intoxicada, não resistindo o organismo dos aimorés, todos morreriam.
A descrição do ritual de antropofagia tecido por José de Alencar segue rigorosamente os detalhes descritos por Gandavo.
“... Quando estes índios tornão alguns contrários, se logo com aquelle ímpeto os não matão, levão-nos vivos pêra suas aldeãs (ou sejão portuguezes ou quaesquer outros índios seus imigos),e tanto que chegão a suas casas lanção huma corda mui grossa ao pescoço do cativo pera que não possa fugir, e armão-lhe huma rede em que durma...(GANDAVO, p.54) E o dia que hão de matar este cativo, pela manhã se alguma ribeira está junto daldea levão-no a banhar nella com grandes cantares e folias,... Aquelle que o hade matar empenna-se primeiro com pennas de papagaio de muitas cores por todo o corpo... Está huma india velha com hum cabaço na mão, assi como elle cae acode muito pressa com elle a meter-lho na cabeça pêra tomar os miollos e o sangue: tudo emfim cozem e assão, e não fica delle cousa que não comam. Isto he mais por vingança e por ódio que por se fartarem. (GANDAVO, p.55)

“... –Guerreiro goitacá, tu és prisioneiro, tua cabeça pertence ao guerreiro Aimoré; teu corpo aos filhos de sua tribo; tuas entranhas servirão ao banquete da vingança. Tu vais morrer...(2009, p.252) O costume dos selvagens, de não matar na guerra o inimigo e de cativá-lo para servir ao festim da vingança... Segundo as leis tradicionais do povo bárbaro, toda a tribo devia tomar parte no festim: as mulheres moças tocavam apenas na carne do prisioneiro; mas os guerreiros a saboreavam como um manjar delicado, adubado pelo prazer da vingança; e as velhas com a gula feroz das harpias que se cevam no sangue de suas vitimas. (2009, p.263)

Mas como na maioria das narrativas, o herói não pode morrer, Peri, como todos os outros, é salvo por Álvaro (enamorado de Ceci) e, retornando à casa de D. Antonio de Mariz, faz toda a revelação do seu ato heróico na tentativa de salvar a família de Ceci. Peri já sentindo as reações do veneno no seu corpo, lembrou de sobressalto da promessa que fizera a sua senhora, não poderia morrer, viveria para salvá-la. Sendo assim, atravessa a mata à procura da erva que lhe restituiria a vida, segredo que trazia da sua tribo. Com suas habilidades, Peri encontra a erva e com a preparação do sumo desta, é restituído em forças e vigor:
“... Então tratou de recuperar as forças que havia perdido, e tudo quanto a floresta lhe oferecia de saboroso e nutriente serviu a este banquete da vida, em que o selvagem festejava a sua vitória sobre a morte e o veneno.(2009, p.274)

Os aimorés persistem na luta, D. Antonio de Mariz não vendo como salvar a si e a sua família e aos agregados, reconhece em Peri todas as características de um herói, capaz de desafiar até a morte para salvar sua Ceci, convence Peri a converter-se cristão, pois só assim poderia confiar-lhe a salvação da sua filha.
Peri que até então já abandonara seu povo, seus costumes, suas tradições, devotando sua vida a Ceci, que mal faria tornar-se cristão se o intuito deste ato era salvá-la? Percebe-se o quanto Peri estava disposto a tudo. Torna-se escravo do branco colonizador, doando seu trabalho e até mesmo a sua vida. Abandona totalmente a sua cultura, deixando se batizar, torna-se cristão, recebendo a missão de salvar a filha de D. Mariz que impossibilitado de resistir às investidas dos selvagens, resolve destruir a sua casa para não se render. Peri foge com Ceci para a selva, enquanto o solar se incendeia.
“Peri tinha abandonado tudo pó ela; seu passado, seu futuro, sua ambição, sua vida, sua religião mesmo; tudo era ela, e unicamente ela; não havia, pois, que hesitar.” (2009, p.308)

Uma vez na floresta, onde, “todas as distinções desapareceriam”, Ceci percebe pela primeira vez a beleza de Peri e uma mudança começa a se operar em seu espírito, amava Peri.
Testemunhas únicas do ocorrido, Peri e Ceci caminham agora por uma natureza revolta em águas, enfrentando a fúria dos elementos da tempestade. Cecília prefere não mais voltar ao Rio de Janeiro, conforme recomendação do seu pai, escolhe ficar com Peri, morando nas selvas. Com a tempestade que aumenta o fluxo das águas, Peri, com força descomunal sobe ao alto de uma palmeira, arrancando-a do solo, improvisando uma canoa para proteger Ceci. O romance termina com a palmeira perdendo-se no horizonte, não sem antes Alencar ter sugerido, nas últimas linhas da narrativa, uma bela união amorosa, semente de onde brotaria mais tarde, a raça brasileira...
“- Sempre... Viveremos juntos como ontem, como hoje, como amanhã. Tu cuidas?... Eu também sou filha desta terra; também me criei no seio desta natureza. Amo este belo país!...”(2009,p.308)
“- Tu viverás!...” (2009, p.314)

PERI: CONTRAPONTO COM A CONTEMPORANEIDADE

O mito histórico é uma forma de o tempo passado ser entendido. Nisto consiste toda a sua validade, que extrapola o universo da imaginação para o qual foi criado, ensinam os anais históricos brasileiros. A elevação do mito do bom selvagem rosseauísta serviu para consolidar os interesses escravistas. Nessa visão, o indígena recebe a bênção de seu senhor e se iguala a ele. Foi o que aconteceu com Peri, no desfecho dramático do romance, com a família de Cecília sendo dizimada pelos Aimorés a mando do padre Loredano.
Percebe-se que os verdadeiros inimigos dos colonizadores são os Aimorés, a quem Alencar descreve como “bárbaros, horrendos, satânicos, carniceiros, sinistros, horríveis, sedentos de vingança, ferozes, diabólicos” (2009, p.251). Sem voz, em sã e consciente obediência ao seu senhor, Peri é apenas um vassalo. Ele não cumpre a função de herói indígena que se espera, que seria a de lutar contra os desmandos do colonizador. Ele é mais um fraco, que se imola em nome dos poderosos.

Creio que é possível detectar a existência de um complexo sacrifical na mitologia romântica de Alencar. Comparem-se os desfechos dos seus romances coloniais e indianistas com os destinos de Carolina, a cortesã de As asas de um anjo (remida e punida em A expiação), de Lucíola, no romance homônimo, e de Joana, em Mãe. São todas obras cujas tramas narrativas ou dramáticas se resolvem pela imolação voluntária dos protagonistas: o índio, a índia, a mulher prostituída, a mãe negra. A nobreza dos fracos só se conquista pelo sacrifício de suas vidas. (BOSI, 2007, p. 179)

Idealizado aos moldes europeus, alto, forte, belo, Peri está a serviço do colonizador. É neste sentido que o romance deve ser tomado, como uma construção mitológica que recria uma falsa realidade histórica do Brasil, aquela que descreve o índio como um ser dócil, obediente, sincero. Acostumado à liberdade, o índio era justamente o contrário frente ao colonizador. Não obedecia, era dado a fugas, tornava-se taciturno em cativeiro, exatamente como o pássaro na gaiola.
Alencar, ao idealizar Peri como mito, transforma-o de prontidão numa personagem mediadora, que dispensaria juízos de valor na leitura crítica. O que se vê em Peri é uma submissão dos brasileiros aos valores da Colônia e, como tal, pode-se afirmar que é o que ocorre no Brasil de hoje, quando os partidos políticos se unem aos interesses de uma minoria poderosa.
Não há, em qualquer parte do país, um aglomerado de pessoas humildes que não se curvem diante dos políticos, servindo-lhes em troca de favores. Da mesma forma, o brasileiro costuma mitificar aqueles que são tidos como heróis. É o que ocorreu, por exemplo, com o presidente Lula, cuja ascensão ao poder se deveu mais à mitificação de seus ideais do que à consciência democrática.
O processo de colonização no Brasil marca profundamente a vida e a história dos povos indígenas no país, onde sua cultura sempre foi desrespeitada, desvalorizada e seus direitos foram negados. Essa imagem de desrespeito foi fortalecida no período de formação da literatura brasileira quando os autores tentam construir a identidade nacional apresentando o índio como mito ou um bom selvagem quando serve e obedece ao colonizador. Todavia, esta característica está intensamente registrada na obra de José de Alencar O Guarani, dentre outras.
Certamente, imagens como esta de José de Alencar e de outros escritos contribuíram nos diversos processos de marginalização dos povos indígenas no território brasileiro. Pois esta desencadeou uma crença imaginária e idealizada sobre o índio brasileiro, considerado sem fé, sem organização, tido como folclore da cultura e da identidade nacional. A exemplo disto é a comemoração do dia do índio na maioria das escolas brasileiras que o tem como um mito bem distante ou como folclore, quando deveria refletir sobre a cultura indígena, seu jeito de lidar e de preservar a terra e sobre o modo como se organizam para garantir sustentabilidade.
Desde a origem da civilização brasileira que a discriminação dos índios esteve e está relacionada com o desenvolvimento econômico do país. Um modelo pensado pelos latifundiários, fazendeiros, empresas, que sempre se mantiveram no controle da economia e do poder para favorecer pouca gente. Neste sentido, muitos índios foram expulsos para os grandes centros urbanos, longe de sua cultura, do seu jeito de ser e de viver na e com a terra. Muitas tribos foram dizimadas para dar lugar ao projeto de desenvolvimento e de civilização do país, nas construções de barragens, Usinas Hidrelétricas, grandes projetos de irrigação como estão acontecendo com a construção do canal da transposição das águas do Rio São Francisco, que vai atravessar 38 territórios de 32 etnias com uma população de 70 mil indígenas.
Portanto, na contemporaneidade, cada índio das tribos existentes é considerado herói, pois lutam conjuntamente com seus irmãos em favor de sua tribo para garantir a sustentabilidade e a defesa da terra, divergindo da lógica do colonizador.

REFERENCIAS:

ALENCAR, José de. O Guarani. Ed. São Paulo: Ciranda Cultural, 2009. – (Clássicos da Literatura).

BERND, Zilá. Literatura e identidade nacional. 2.ed. Porto Alegre: Ed. Da UFRG, 2003.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. São Paulo : Companhia das Letras, 1992.

GANDAVO, Pero de Magalhães. Tratado da Terra do Brasil;História da Província Santa Cruz. Belo Horizonte: Ed. Itatiaia, 1980.

Relatório de Denúncia. Povos indígenas do Nordeste impactados com a transposição do rio São Francisco, 2010, Brasil.



3 comentários:

  1. Achei o artigo bem trabalhado enquanto pesquisa bibliográfica, mas confuso enquanto produção textual.

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  2. O artigo do grupo de Adriana ficou bom. Traz a marca indelével de sua orientadora, a professora Aurinívea de Assis, em sua precisão, objetividade e fluidez. Leitura atraente.

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